Tefopress: Um grupo de stalkers anda até a Praça Dr. Pedro Corazza – PERCURSOS

Texto: Stefano Maccarini

Publicado originalmente em medium.com/percursos em Março de 2017.

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foto: Vitor Pavão

No dia treze de dezembro percorri com o Dobras Visuais, grupo de estudos orientado pela Lívia Aquino e Juliana Biscalquin, um caminho arbitrário por uma rota preestabelecida e só conhecida por mim. Caminhamos em um grupo de 10 pessoas por cerca de três horas, pela cidade de São Paulo, se movimentando coletivamente e tomando decisões de navegação em grupo.

Essa história de caminhar e percorrer o mundo começou pra mim quando a Lívia, em um dos encontros, sugeriu a leitura do “Walkscapes”. Desde então eu comecei a praticar a caminhada e o ciclismo de uma maneira que o principal objetivo era criar O mapa psicogeográfico da terra em que eu me deslocava.

Nos encontramos na casinha, na rua Dr. Augusto de Miranda, e lá fizemos uma pequena reunião onde expliquei o que aconteceria durante o trajeto. Falei que os guiaria através da cidade para um lugar onde homem ou mulher nenhum jamais pisou e perguntei, antes de sairmos, o que os participantes fariam ao chegar nesse lugar novo.

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Utilizei também um mapa, sobre o qual os participantes foram instruídos a registrar o percurso. O mapa em questão é o Brasil Nova Tavola, de 1561, que mostra as fronteiras do novo mundo. Ao centro índios canibais assam uma perna sobre uma fogueira embaixo da frase “os índios nativos desse país comem carne humana”. Apontei para a imagem e estabeleci para o grupo que aquele seria o ponto de partida.

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mapa utilizado para o exercício

Seguimos na Dr. Augusto de Miranda até a Faustolo, lá atravessamos a Guaicurus e dobramos a esquerda na Santa Marina. Chegamos então a uma escadaria que passava por cima dos trilhos. Seguimos reto pelo bairro industrial até chegar na estação Água Branca da CPTM.

trem

Enquanto aguardávamos o trem passar li dois parágrafos de “Advice to a young merchant” de Benjamin Franklin, o livro que segundo Weber nos esclarece para a existência de uma ética de trabalho protestante:

“Lembre-se que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar 100 reais por dia de trabalho e que fica sem fazer ou sai do seu trabalho por metade do dia, apesar de ele não ter gasto nada durante o tempo parado, não deve-se reconhecer isso como a única experiência; ele na verdade jogou fora 50 reais”

“As ações mais insignificantes podem afetar o crédito de um homem. O som do martelo as 5 da manhã ou as 9 da noite, se ouvido por um credor, deixa ele tranquilo pelos próximos seis meses. Porém se ele vê você em uma mesa de bilhar ou ouve sua voz no bar, quando você devia estar trabalhando, ele mandará alguém te cobrando no dia seguinte. Roupas melhores que a dele e de sua esposa ou uma despesa sua maior que qualquer despesa que ele pode bancar chocam o orgulho dele e ele age de forma a te fazer mais humilde. Credores são um tipo de pessoa que tem os melhores olhos e ouvidos bem como as melhores memorias.”

Caminhamos através da Av. Santa Marina até a rotatória que une a Av. Marquês de São Vicente, Comendador Martinelli, Ermano Marchetti e Santa Marina. Apesar de ser do lado de uma universidade, a rotatória não possui faixa de pedestres em nenhum lado. Após atravessar por entre carros que paravam para o semáforo alcançamos a Praça Dr. Pedro Corazza.

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foto: Vitor Pavão

A praça mal faz jus ao título, serve apenas para separar as vias de modo que não possuía nenhum tipo de mobiliário urbano. O grupo notou a presença de lixo, árvores, um poste de luz, algumas trilhas que abrem no mato e uma câmera de vigilância.

Ao ficarmos em roda na praça retornei a pergunta feita antes da partida: o que fariam caso fossem a primeira pessoa a chegar em algum lugar? Algumas respostas foram plantar uma árvore, levar um souvenir e limpar o terreno. O meu plano era o de rezar uma missa: a missa do lixo vivo.

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papeis recolhidos durante o percurso
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objeto encontrado durante o percurso
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foto: Vitor Pavão

A missa consistiu em um pequeno ritual de territorialização. Primeiro agradecemos o lixo vivo por estarmos ali e retificamos em uníssono que não nos arrependemos de nada. Em seguida lemos os 11 pontos do New Urbanism, presentes nos tratados sobre o New Babylon e o Homo Ludens de Constant Nieuwenhuys, contidos no livro “Provos — Amsterdã e o nascimento da contra cultura” editado no Brasil pela editora Veneta. Ao final cada um falou o nome de alguma coisa que gostaria de destruir e cuspiu no chão.

“1. Já é visível uma crescente discrepância entre os padrões aplicados na distribuição dos espaços urbanos e as reais necessidades da comunidade. Projetistas e arquitetos tendem a pensar nos mesmos moldes estabelecidos por Le Corbusier em 1933, quando falava das quatro funções da cidade: viver, trabalhar, trânsito e lazer. Essa excessiva simplificação reflete mais uma forma de oportunismo do que uma capacidade de observação e de apreciação daquilo que as pessoas desejam hoje, resultando em que a cidade está se tornando rapidamente um conceito obsoleto. Numa época em que a automatização e outros progressos tecnológicos estão reduzindo a demanda de trabalho manual, continua-se programando bairros operários cuja única função é a de dormitórios.”

“4. O ambiente social das cidades é ameaçado pela caótica explosão do trânsito, que, em si, nada mais é do que ridiculamente levar às últimas consequências o direito de propriedade. O número de carros é cada vez maior, sempre maior do que o daqueles e movimento. O uso do automóvel perdeu sua vantagem maior: fornecer um transporte rápido de um lugar a outro. O depósito de propriedades privadas em solo público (o estacionamento, como se costuma chamá-lo) engole não apenas o espaço destinado ao fluxo do trânsito, mas vai também devorando, dia após dia, pedaços cada vez maiores de espaço vital. ”

“9. Uma pessoa para de dar importância à própria casa quando seu raio de ação se expande e a quantidade de tempo livre aumenta. No momento em que teve início o trabalho produtivo durante a Nova Idade da Pedra, o homem foi transformado numa criatura sedentária. Agora, porém, que a necessidade de trabalho manual está para desaparecer, não há mais motivos para permanecermos ligados por muito tempo ao mesmo lugar.”

As citações acima foram retiradas do livro “Provos — Amsterdã e o nascimento da contra cultura” editado no Brasil pela editora Veneta

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Após o ritual seguimos pela Ermano Marchetti até a Rua Curdume. Encontramos uma estranha plataforma com elevação aproximada de quinze centímetros. Não havia nenhuma obstrução que justificasse a presença da plataforma por isso elegemos o local como o mais apropriado para a foto do grupo.

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foto: Lívia Aquino
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foto: Vitor Pavão

Andamos a rua Curdume e encontramos um conjunto de prédios de cerca de seis andares cada que seguiam até o fim da rua, todos vazios, com exceção do primeiro, que sedia a Maurício de Sousa produções, todos os outros são utilizados como estacionamento. No fim da rua, um elevado transpunha os trilhos de trem, por onde passamos até chegar no Tendal da Lapa.

De lá seguimos pelo bairro até um bar na esquina da Rua Ministro Ferreira Alves com a Dr. Augusto de Miranda, onde pedi que os mapas me fossem devolvidos.

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